Contratações públicas: apontamentos sobre a formação dos modelos contemporâneos de licitações públicas no Brasil e nos Estados Unidos

Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

Doutora em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestra em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São PauIo (PUC–SP). Professora Adjunta de Direito Administrativo da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

Fábio de Sousa Santos

Doutorando e Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor de cursos e Graduação e pós graduação. Procurador do Estado de Rondônia.

Resumo: A indispensabilidade da figura estatal nas sociedades contemporâneas e a adoção de uma economia de mercado tornam a participação dos entes estatais nos circuitos de comercialização necessária. O respeito ao Estado Democrático de Direito sobreleva a importância de construção de mecanismos isonômicos e republicanos para a seleção de quem será contratado. Brasil e Estados Unidos da América comungam de caracteres sociais, em especial um passado colonial e uma realidade de intervenção ativa do Estado na economia como demandante em circuitos de comercialização. O artigo se utiliza do método comparativo, justapondo as realidades históricas dos dois países e identificando os eventos legislativos na régua histórica, permite compreender o fenômeno da contratação pública no universo dos mecanismos de promoção do desenvolvimento econômico por parte do Estado. A formação do modelo de contratação estadunidense remonta ao próprio surgimento do Estado nacional, e vem, desde então, sendo fortemente influenciado pela dinâmica dos conflitos armados nos quais se envolve. O modelo brasileiro está ligado a eventos mais recentes, especialmente na nova República, com uma especial influência do modelo de Administração Pública adotado pela Constituição Federal de 1988 e pelas reformas administrativas promovidas ao final da década de 1990, com a introdução do regime do pregão. Recomenda-se que qualquer alteração no regime das licitações públicas brasileiras leve em conta o acumulado da experiência histórica nacional, formação de servidores e lições de Direito Comparado.

Palavras-chave: Estado de Direito. Licitações. Desenvolvimento. Brasil. Estados Unidos.

Sumário: 1 Introdução – 2 As formas embrionárias dos procedimentos de contratação pública – 3 O século XX e os contornos iniciais do modelo de licitação pública atual – 4 Alguns apontamentos sobre a estrutura normativa atual das licitações públicas – 5 Considerações – Referências

  • Introdução

O Estado é uma figura indispensável nas sociedades modernas. Mesmo nas formatações teóricas mais radicalmente liberais, a figura da autoridade (que precisa de alguma forma de personificação alheia aos for- matos da sociedade civil) é necessária para a garantia das atividades de defesa e segurança ou imposição das estruturas de propriedade e produção.¹ Nesse sentido, em um ambiente capitalista, é natural a ocorrência de uma interface contratual entre a Administração Pública e o mercado. Essa naturalidade ocorre porque, ainda que com uma certa flexibilidade, há uma presunção de que o Estado não deve ocupar diretamente todo o espectro da atividade econômica, mas estar próximo à mesma. As figuras estatais têm estado presentes em meio às relações sociais em que também figuram seus valores, suas crenças, práticas e os resultados palpáveis de busca por mais qualidade de vida para seus integrantes, típicas do Estado de bem-estar.²

Os Estados Unidos da América, que ainda repousam no ideário de muitos como um modelo de Estado weberiano: com um mercado competitivo e capitalista, racional e eficiente, sustentam-se em pujança econômica e política que tem força para interferir nos desenhos territoriais estrangeiros, traçando seu rumo, inclusive para frear sua competitividade.³

Analisando a interface entre Brasil e Estados Unidos, é preciso identificar que os mesmos comungam com traços históricos relevantes: um passado escravagista 4 e colonial, bem como um corrente e significativo intercâmbio econômico.5 Ainda no campo das semelhanças, nos Estados Unidos, as agências federais gastaram aproximadamente 500 (quinhentos) bilhões de dólares através de procedimentos licitatórios, entre os anos de 2008 e 2013.6 No Brasil, para o mesmo período, os dados do Governo Federal apontam para um volume de recursos anual entre 250 e 300 bilhões de dólares.7

O firmamento de negócios com o Estado, tanto em terras estadunidenses como no Brasil, constitui-se em importante nicho para o mercado, bem como um largo canal de aplicação dos recursos públicos por meio de contratos públicos. Nesse sentido, relevante esclarecer que por “modelo de contratação”, no presente trabalho, entende-se o mecanismo pelo qual a Administração Pública seleciona alguém para atender a uma necessidade pública. No Brasil convencionamos chamar tal processo de licitação.

A análise proposta neste trabalho observa os elementos históricos relativos à participação do Estado como agente econômico, com foco no prisma de suas ações como demandante em circuitos de comercialização, destacando a configuração jurídica dos países citados. Embora a essência do método comparativo seja uma operação de justaposição de realidades normativas diversas,8 a contextualização é necessária, sendo imprescindível para a visualização do conceito adequado de determinado símbolo linguístico – etapa importante para a adequada comparação.9

A mera tradução não é, nem de longe, suficiente. Assim sendo, o presente trabalho oferece elementos históricos síncronos com os elementos de previsão das legislações. Nesse ponto, Brasil e Estados Unidos construíram modelos que discrepam claramente, fruto dos caracteres históricos aqui levantados. O recorte histórico situa-se a partir do século XIX e início do século XX, momento de formação dos Estados estadunidense e brasileiro, caminhando para o início do presente século, momento no qual o modelo contratual atualmente vigente se consolida, ainda que com mudanças pontuais.

  • As formas embrionárias dos procedimentos de contratação pública

A primeira legislação brasileira a tratar de forma mais específica de mecanismos procedimentais para a contratação pública é o Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1862, que “aprova o regulamento para as arre- matações dos serviços a cargo do Ministério da Agricultura Commercio e Obras Publicas”.10 A norma teve como foco os aspectos procedimentais para o oferecimento de propostas ao ente público e de gestão contratual, dedicando-se de maneira a regular as licitações de obras. Embora não seja possível verificar de seu texto maior preocupação com o uso desse instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional, ou mesmo em garantir força maior ao princípio republicano, os 39 artigos de tal norma destacam a arrematação como o foco para a formalização.11 Edson de Oliveira Nunes aponta que “o domínio público é regulado por normas e instituições baseadas no universalismo de procedimentos, isto é, normas que podem ser formalmente utilizadas por todos os indivíduos da polity, ou a eles aplicadas”.12

Nos Estados Unidos, seu sistema federal de licitações tem forte molde para o abastecimento de bens voltados aos conflitos armados.13 A proximidade entre o Congresso e o sistema de licitações é um exemplo de traço característico relevante que podem ser identificados desde a guerra da independência americana.14 Talvez por isso, a regulação mais antiga – cuja norma, incorporada à legislação moderna, subsiste – proíbe membros do congresso de se beneficiar direta ou indiretamente de contratos públicos.15 Depois da guerra da independência, os Estados Unidos adotaram medidas para aumentar a produção doméstica,16 tendo sido a produção direta de bens, especialmente armas, a ferramenta utilizada pelo país estadunidense como mecanismo de independência nacional de fornecedores estrangeiros, resultando no atual consenso de necessidade de “segurança de suprimento”.17

A lei de 3 de março de 1809 é a primeira norma procedimental americana acerca de licitações, estabelecendo a necessidade de publicidade formal antes do ato e criando um agente governamental (uma versão inicial da contemporânea figura do oficial de contratos) para contratação e gestão dos contratos.18 A esse agente fora delegada uma responsabilidade relevante pelas decisões a serem tomadas, com uma discricionariedade substancial: elementos presente até os dias atuais.19

Note-se que as ocorrências identificadas em solo estadunidense conectam-se com as opções políticas e a realidade social dos Estados Unidos: a opção pela democracia traz a cabo a preocupação com a probidade de seus representantes e a higidez do sistema representativo; a possibilidade de delegação aos oficiais nasce da existência de mão de obra qualificada, o que condiz com o estágio dos investimentos em educação estadunidense (em 1800, entre 1%, um por cento, e 2%, dois por cento, dos brasileiros sabiam ler e escrever, enquanto essa proporção chegava a 70% entre os estadunidenses).20

  • O século XX e os contornos iniciais do modelo de licitação pública atual

No Brasil, em 1922, foi editado o Código de Contabilidade da União (Decreto nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922), norma brasileira que fazia menção, ainda que de passagem, a regramentos concorrenciais para contratações públicas.21 Por iniciativa de presidente Getúlio Vargas,

Central de Compras, entidade que pavimentou o caminho para a posterior criação do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP).

A reforma administrativa então levada a cabo por Vargas dá início a um processo continuado de modernização do Estado, por meio da criação de agências direcionadas a se tornarem “ilhas de excelência”.23 A este fenômeno Edson de Oliveira Nunes deu o nome de “insulamento burocrático”, tendo sido desenhado para superar o modelo de administração patrimonialista até então vigente, especialmente por meio da fuga das influências políticas, isto é, da busca pela tecnicidade e burocratização.24 Ainda que defendendo a meritocracia como justificativa para a nomeação das funções públicas, o perfil da gestão mantinha-se com forte caráter centralizador e pouco dialógico.

A regulamentação de algumas matérias no Brasil, dentre elas, a legislação e sistematização do sistema de compras públicas (através da central de compras) e a criação das “ilhas de eficiência”,25 foi erigida com o móvel de eliminar o clientelismo e o patrimonialismo. De um lado, “o universalismo de procedimentos confere uma aura de modernidade e de legalidade pública ao sistema político e às instituições formais”,26 enquanto o insulamento acarreta a diminuição do espectro das influências partidárias e populares na formulação de políticas públicas, tornando-a um campo eminentemente técnico.27

Juscelino Kubistchek estabeleceu o Plano de Metas de seu governo na intenção de fazer o que se faria em “cinquenta anos em cinco”. A construção de Brasília, nova capital federal, é símbolo do relativo sucesso do plano. Ainda que não tenha induzido um ciclo duradouro de desenvolvimento, as ações desenvolvimentistas de Kubistchek lograram êxito em alterar o perfil industrial nacional.

A Administração Pública federal se viu ocupada, em espaços estratégicos de administração e planejamento, por representantes da Marinha, Exército e (ou) Aeronáutica, incluindo setores de produção como a Petrobras e a área da segurança pública.28 O plano era ambicioso, intitulado Plano de Metas, que previu 31 metas a serem alcançadas pelo governo, com 73% (setenta e três por cento) das ações direcionadas às metas relacionadas a energia e transporte, de maior interesse dos empreiteiros nacionais.29 Durante a presidência de JK consolidou-se, ao menos no ramo da Construção Civil pesada, a divisão de funções entre Estado – que passou a limitar-se ao seu papel de contratante – e a iniciativa privada.30 No entanto, a política de incentivo à industrialização após os anos 40 foi efetivada por meio de instrumentos cambiais, creditícios e fiscais, o que levou a uma intensa concentração de renda e criação de uma capacidade ociosa. 31 Um olhar mais acurado mostra que “a despeito do tom nacionalista, as políticas governamentais estimularam os investimentos estrangeiros na indústria, basicamente, através da regulamentação das taxas de câmbio e das tarifas alfandegárias, além das políticas comerciais”.32

A proteção democrática proporcionada pela burocracia, veiculando legitimação por meio do procedimento,33 se perde em meio ao contexto institucional ainda permeado por valores patrimonialistas e clientelistas. Exemplo claro é dado durante a implementação do plano de metas de Juscelino: o Departamento Nacional de Estrada de Rodagem não utilizou procedimentos licitatórios para a seleção dos executores dos contratos, ficando a seleção a cargo do departamento, sob a alegação do elevado número de obras.34

Ainda sob a presidência de Herbert Hoover, mais precisamente em 3 de março de 1933, surge aquela que vem a ser, ainda hoje, uma das legislações mais relevantes em termos de contratações públicas nos Estados Unidos e a mais relevante em termos de conteúdo doméstico: o

Buy American Act.35 A lei determina que parcela substancial dos suprimentos para os entes públicos ou obras públicas deve ser produzida, manufaturada ou obtida em solo americano.36 A adoção do Buy American Act, em resumo, torna regra a aquisição de bens e outros insumos de origem nacional nas aquisições do governo federal estadunidense, e, pelos primeiros vinte anos de vigência da legislação, a percentagem, para que fosse considerada “substancial”, era de 75% (setenta e cinco por cento) do valor agregado do produto adquirido pelo Estado norte-americano.

A intenção declarada e mais evidente é a proteção de postos de tra- balho e das empresas instaladas em solo americano.37 O substrato político para a alteração legislativa, especialmente nos debates no Congresso não se circunscreveu apenas às questões econômicas atinentes às políticas de resposta à grave crise econômica, mas permeou também questões mais subjetivas, sendo a aquisição de produtos made in America não só uma opção a ser tomada em razão de protecionismo, mas uma questão de “orgulho nacional”.38

Já durante a ditadura militar brasileira, o Decreto-Lei nº 200/67, marco normativo relevante da história do Direito Administrativo nacional, sistematizou melhor as licitações e contratos públicos,39 fixando que as compras estatais deveriam ser pautadas “no interesse do serviço público, as condições de qualidade, rendimento, preços, condições de pagamento, prazos e outras pertinentes”.40 Desde então se assentaram no Direito Administrativo brasileiro cinco das sete modalidades de licitação existentes hoje no Direito brasileiro,41 estabelecendo uma capilaridade maior no processo decisório relacionado às contratações públicas. A norma “estabeleceu como linha diretiva que a administração casuística, assim entendida a decisão de casos individuais, compete, no nível de execução, em princípio, especialmente aos serviços de natureza local, que estão em contato com os fatos e com o público”.42

Embora o termo “licitação” tenha sido introduzido no mundo jurídico brasileiro pela Lei nº 4.401, de 10 de novembro de 1964, somente o Decreto-Lei nº 2.300/86 é que deu, pela primeira vez na história do Brasil, tratamento sistematizado à disciplina das licitações públicas e contratos administrativos.43 É essa norma que inaugura a expressão consagrada de que “a licitação destina-se a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração”,44 sendo revogada posteriormente pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a norma geral de licitações ainda vigente no país.

  • Alguns apontamentos sobre a estrutura normativa atual das licitações públicas

A legislação acerca das compras públicas estadunidenses começou seu desenvolvimento mais relevante na década de 60, mas somente na década de 80 ganhou os contornos que possui atualmente.45 O marco normativo que precisa ser destacado nessa década é a entrada em vigor do Federal Aquisition Regulation (FAR), norma que estabelece o mais importante parâmetro regulamentar da matéria.46 A importância do FAR sobreleva característica do sistema normativo estadunidense que, em muito, contrasta com o nacional, qual seja: a existência de fontes normativas primárias fora do Legislativo.47

As intervenções no sistema americano de compras destinaram-se a aperfeiçoar o que já existia, preservando normas (ainda que incorporadas a novos instrumentos normativos) existentes desde a independência do país, incorporando as diretivas de novos atos legislativos ou diretrizes do Government Acountability Office (GAO), órgão de controle criado ainda em 1920, mas que só teve a regularização da sua atuação em licitações em 1984.48 Essa longevidade dos institutos americanos não é de causar espé- cie, eis que o Commom Law foge à lógica linear inerente à normatização de Civil Law, por basear-se no processo natural de acumulação de expe- riências jurisprudenciais ao longo da história.49 Ainda assim, o Congresso nacional dos Estados Unidos, nos últimos 50 anos, atua anualmente no sentido de melhorar o sistema de licitações federais, por meio de tentativa e erro.50

No Brasil, o desinteresse histórico pela regulação efetiva da matéria, em especial pelo Congresso Nacional brasileiro, e o pouco prestígio que a matéria parece merecer no âmbito social 51 fazem com que as alterações na legislação sejam paulatinas e pontuais, sendo as mais representativas posteriores ao advento da Constituição Federal de 1988. Bresser Pereira, afastando-se do modelo burocrático proposto na primeira metade do século XX em direção a um modelo de administração gerencial, pautada pelo maior compromisso com o resultado das ações do Estado: movimento que teria sido revertido pela Constituição Federal de 1988.52

A Constituição de 1988 foi o primeiro texto constitucional brasileiro a fazer menção à necessidade de licitação, previsão que não tem para- lelo em sua congênere estadunidense. Como destacado acima, a norma fundamental sobre procedimentos licitatórios no Brasil é a Lei nº 8.666, de 1993, que submete a Administração a uma cadência extensiva de seus atos.53 Bresser Pereira afirmou que a referida lei iria “formalizar o sistema de compras do Estado a um nível inimaginável, encarecerá extraordinariamente o processo de compra, sem por isso reduzir a corrupção”.54

O pregão é a modalidade licitatória incluída no ordenamento com o advento da Lei nº 10.520/2002, tendo como móvel de adoção “a desburocratização do sistema de compras administrativas, bem como a diminuição dos custos”,55 dentro de uma consciência de que “o procedimento da licitação tem caráter instrumental, porquanto espelha um meio para que a Administração alcance fim por ela colimado”.56 Trata-se de uma tentativa de reduzir o impacto dos custos diretos e indiretos do procedimento, bem como oferecer um mecanismo mais eficiente para as contratações públicas. A modalidade pregão, em 2017, foi utilizada em 20.671 dos 98.779 procedimentos de compras públicas realizadas no âmbito da União,57 importando no emprego de mais de 18 bilhões de reais, o que corresponde a mais de 38% (trinta e oito por cento) dos valores licitados no ano de 2017; considerados apenas os procedimentos de natureza concorrencial, o pregão responde por 97% (noventa e sete por cento) dos procedimentos e 88% dos volumes empregados.58

  • Considerações

Analisar o modelo atual de contratações públicas é, em parte, reconstruir a história do Estado contratante. O Estado brasileiro, em virtude de seu evidente atraso desenvolvimentista, foi levado a, durante a segunda metade do século XX, acelerar o passo na adoção de mecanismos institucionais adaptados à economia de mercado, não necessariamente absorvidos integralmente pela cultura jurídica institucional e social.59 Por sua vez, a estrutura institucional estatal e social americana, de um país liberal, desenvolvido e com forte ambiência no tema das contratações públicas, já possui um ambiente de mercado consolidado, mutualístico e cooperativo, há mais de 100 (cem) anos.60

Ao apontarem-se os elementos históricos para a submissão do Estado – com mais contundência, o Poder Executivo – à lei,61 é de se perceber que existe uma lógica que serve de substrato ao uso do ordenamento jurídico como balizador da ação estatal, no intuito de promover igualdade e segurança jurídica não somente de maneira intersubjetiva, mas também intertemporal.62 A juridicidade, interpretação principiológica com foco no dever de agir da Administração Pública, deve ser vista como uma expressão contemporânea da legalidade, fundamentando “a defesa de uma atividade administrativa pautada em valores democráticos e humanistas, não fugindo da realidade, mas solicitando que esta seja reconhecida e tratada de acordo com as previsões normativas vigentes”.63

Nos Estados Unidos, já no início do século XIX, estavam demarca- das as características fundamentais que traçam a diferença sensível entre os dois sistemas de contratação contrapostos: o princípio de que o Estado não é dotado de horizontalidade em relação ao contratado, devendo agir de boa-fé e com respeito ao ordenamento.64 O desprezo do Estado pelo seu próprio plano normativo, especialmente enquanto contratante, configura claro acréscimo de risco e insegurança nas relações contratuais com ele travadas, gerando desconfianças sobre a ética na eficácia e no próprio papel e força que desempenha o Direito, no Brasil.65

Tramita no Congresso nacional o Projeto de Lei do Senado nº 559/2012, já encaminhado à Câmara dos Deputados, que trata da reformulação da legislação de licitações e contratos. É de se destacar o aparente esforço do legislador no sentido de incluir na legislação nacional instrumentos hoje alheios aos institutos licitatórios nacionais, tal como o diálogo competitivo – inspirado na legislação estadunidense –, buscando ajustar ao panorama internacional a Administração Pública brasileira, especialmente em termos de controle e transparência.66

O avanço da superação do modelo do ato administrativo unilateral, com o incentivo à consensualidade, característica do Estado Social, faz com que a figura do contrato passe a ter importância equivalente à do ato administrativo.67 É essa a realidade prospectiva que as propostas de reforma do modelo brasileiro de licitações devem levar em conta quando da edição da nova lei, sem descuidar das experiências que formaram o modelo atual e com o olho nas práticas internacionais, com vistas a aperfeiçoar o instituto. A reformulação do modelo de contratação também passa pela necessidade de um firme e contínuo treinamento funcional, fortalecendo a cultura do respeito às normas adotadas, a partir do envolvimento de ser- vidores e servidoras na atualização dos comportamentos executivos à luz de novos paradigmas jurídicos. Ressalta-se que a atualização da legislação nunca será suficiente para modificar e atualizar o formato das contratações, sem que se envolva a estrutura organizacional, bem como a sociedade brasileira.

Public bids: notes on the formation of contemporary public bids models in Brazil and in the United States

Abstract: The indispensability of the State figure in contemporary societies and the adoption of a market economy makes the participation of State entities in the marketing circuits necessary. Respect for the Democratic State of Law prevails over the importance of building mechanisms for the selection of those who will be hired. Brazil and the United States of America share social characteristics, especially a colonial past and a reality of active State intervention in the economy as a demander in marketing channels. The article uses the comparative method, juxtaposing the historical realities of the two countries and identifying the legislative events in the historical rule, allows to understand the phenomenon of public contracting in the universe of the mechanisms of promotion of economic development on the part of the State. The formation of the US contracting model dates back to the very emergence of the national State and has since been strongly influenced by the dynamics of the armed conflicts in which it engages. The Brazilian model is linked to more recent events, especially in the new Republic, with a special influence of the Public Administration model adopted by the Federal Constitution of 1988 and the administrative reforms promoted at the end of the 1990s, with the introduction of the trading system. It is recommended that any change in the regime of Brazilian public bids should take into account the accumulated national historical experience, training of servers and lessons of Comparative Law.

Keywords: Rule of Law. Tenders. Development. Brazil. United States.

 

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